A BELA MORTE E O CADÁVER ULTRAJADO*

JEAN PIERRE VERNANT

PS. (as notas de rodapé se encontram na última página)

Ao pé das muralhas de Tróia que o viram, desvairado, fugir de Aquiles, Heitor está agora parado. Ele sabe que vai morrer Atena o enganou; todos os deuses o abandonaram. O destino de morte (moîm) já se apoderou dele. Mas, se já não pode vencer e sobreviver, depende dele cumprir o que exige, a seus olhos como aos de seus pares, sua condição de guerreiro: transformar sua morte em glória imperecível, fazer do lote comum a todas as criaturas sujeitas ao traspasso um bem que lhe seja próprio e cujo brilho seja eternamente seu. "Não, eu não pretendo morrer sem Iuta e sem glória (akleiôs) como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir (essoménoisi puthesthm)" (1).
Para aqueles que a Ilíada chama anéres (ándres), os homens na plenitude de sua natureza viril, ao mesmo tempo machos e corajosos, existe um modo de morrer em combate, na flor da idade, que confere ao guerreiro defunto, como o faria uma iniciação, aquele conjunto de qualidades, prestígios, valores, pelos quais, durante toda a sua vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em competição. Esta “bela morte”, kalòs thánatos, para lhe dar o nome com que a designam as orações fúnebres atenienses (2), faz aparecer, à maneira de um revelador, na pessoa do guerreiro caído na batalha, a eminente qualidade de anèr agathós (3), homem valoroso, homem devotado. Para quem pagou com sua vida a recusa da desonra no combate, da vergonhosa covardia, ela assegura um renome indefectível. A bela morte também é a morte gloriosa, eukleès thanatós. Ela eleva o guerreiro desaparecido ao estado de glória por toda a duração dos tempos vindouros; e o fulgor dessa celebridade, kléos, que adere doravante a seu nome e à sua pessoa, representa o termo último da honra, seu extremo ápice, a aretê realizada. Graças à bela morte, a excelência, aretê, deixa de ter que se medir sem-fim com outrem, de ter que se pôr à prova pelo confronto. Ela se realiza de vez e para sempre no feito que põe fim à vida do herói.
Tal é o sentido do destino de Aquiles, ao mesmo tempo personagem exemplar e ambígua, em que se inscrevem todas as exigências mas também todas as contradições do ideal heróico. Se Aquiles parece levar às últimas consequências — até ao absurdo — a lógica da honra, é porque ele se situa de algum modo, para além das regras comuns desse jogo. Como ele mesmo explica, dois destinos foram-lhe oferecidos desde o seu nascimento, para conduzi-lo até onde toda existência humana encontra seu termo, dois destinos que se excluíam rigorosamente (4). Ou a glória ¡morredoura do guerreiro (kléos áphthilon), mas a vida breve, ou então uma vida longa, retirada, mas a ausência de qualquer glória. Aquiles não teve sequer que escolher; viu-se inclinado de vez para a vida breve. Predestinado — poder-se-ia dizer por natureza (5) — à bela morte, vivo, ele já está como que impregnado pela aura da glória póstuma para a qual sempre foi designado. E por isso que não lhe é possível, na aplicação do código de honra, compor e aceitar, conforme as circunstâncias e as relações de força, os acordos covardes, mas pelo menos transigir com os necessários arranjos sem os quais o sistema não está mais em condições de funcionar. Para Aquiles, qualquer ofensa, venha ela de onde vier, é igualmente insuportável e inexpiável, por alta que seja a posição que eleva o seu autor acima de si mesmo na hierarquia social; toda desculpa, todo reconhecimento público de culpa, por satisfatória que possa parecer a seu amor próprio pela extensão e pelo caráter público da reparação, permanece vã e ineficaz. Semelhante a um crime de lesa-majestade, a afronta feita a Aquiles só pode ser paga, a seus olhos, por um rebaixamento total e definitivo do culpado. Este extremismo da honra torna Aquiles um ser marginal, encerrado na solidão altiva da sua cólera. Os outros gregos condenam neste excesso um error do espírito, uma forma do Erro personificado, da Áte (6). Agamêmnon repreende o herói por levar a tal ponto o espírito de competição, pelo qual ele se quer sempre, em toda parte e em tudo, o primeiro, tendo apenas na cabeça, por conseguinte, rivalidade, querela, combate (7); Nestor censura-o por não respeitar na sua conduta a ordem normal das precedências, chegando ele a se medir frente a frente com um rei que tem de Zeus, ao mesmo tempo que o cetro, o poder e o comando, o direito às mais elevadas honras (8); Ulisses, Fénix, Ajax e até mesmo Pátroclo deploram sua dureza intratável, seu ressentimento selvagem, seu coração bravio e desumano, surdo à piedade, insensível tanto aos pedidos e súplicas dos amigos como às desculpas e reparações com que deveria satisfazer-se. Seria Aquiles avesso aos aidós, àquele sentimento de reserva e moderação que age à maneira de um freio, nos dois sentidos, para cima e para baixo, para manter equilíbrio nas situações em que a disparidade de posição, a desproporção de força tornam impossível uma franca competição em pé de igualdade? O aidés é esta timidez respeitosa que mantém o mais fraco à distância do mais forte e que, exprimindo de maneira aberta a inferioridade de um dos protagonistas, coloca-o à mercê do outro para que, desarmado por esta atitude submissa, ele tome a iniciativa de estabelecer uma relação de amizade, de philia, concedendo àquele que se coloca assim sob a sua proteção a parte de honra que lhe cabe. Mas também é, inversamente, a renúncia à violência e à agressividade do mais forte para com o mais fraco, desde que, entregue à sua mercê, ele não mais atue como rival; é a reconciliação do ofendido com aquele que, aceitando humilhar-se, rebaixar-se pelo oferecimento da reparação, reconhece publicamente a timé que ele havia ultrajado anteriormente; é enfim o abandono da vingança e o restabelecimento da amizade entre dois grupos quando, após um assassínio, o preço do sangue, que representa o valor da vítima, sua timé, foi saldado por acordo com os seus (9).
Diante da assembleia dos deuses, Apoio poderá, ele também, acusar Aquiles de abandonar, ao mesmo tempo, toda piedade e ignorar o aidós (10).
No entanto, o alcance dessas indicações não é, na sua essência, de ordem psicológica. Concerne menos a um traço particular do caráter de Aquiles que às ambiguidades de sua posição, ao equívoco de seu estatuto no sistema de valores próprio à tradição épica. Existe, com efeito, na atitude e no comportamento de Aquiles, um aspecto paradoxal que é desconcertante se se atém à psicologia da personagem. Aquiles está absolutamente convencido e sua superioridade em matéria de desempenho guerreiro e, na escala das qualidades que tornam o homem completo, o valor no combate ocupa, para ele, como também para os seus companheiros empenhados na luta, um lugar dos mais elevados. Não existe, por outro lado, um único grego — nem mesmo troiano algum — que não partilhe da convicção de Aquiles e não reconheça nele o modelo inconteste da aretê guerreira (11). Entretanto, esta confiança em si, apoiada num consenso unânime junto a outrem, longe de lhe proporcionar certeza e segurança, acompanha-se de uma suscetibilidade sombria e uma verdadeira mania de humilhação.
É claro que, tomando-lhe Briséis, Agamêmnon inflige a Aquiles uma afronta que atinge o guerreiro no ponto sensível. Ele o dêspoja de seu géras, isto é, da parte de honra da presa comum com a qual o haviam gratificado. Um géras é um privilégio excepcional, uma prestação concedida a título especial, como reconhecimento de uma superioridade, seja de posição e de função — e o caso de Agamêmnon —, seja de valor e de façanha — é o caso de Aquiles. Além da vantagem material que proporciona, o géras vale como marca de prestigio, consagração de uma supremacia social: para todos sem distinção, aquilo que é sorteado em partes iguais, mas para o escol, e apenas para o escol, por acréscimo, o géras.
Confiscar o géras de Aquiles é, pois, de certo modo, negar-Ihe a excelência no combate, a qualidade heróica que nele todos concordam em reconhecer. E o silêncio — mesmo carregado de reprovação — que os guerreiros gregos mantêm na assembleia quanto à conduta de seu príncipe, associa-os a um ultraje cujas consequências deverão com ele pagar. No entanto, na reação de Aquiles, vários traços põem dificuldades. Agamêmnon não procura ofendê-lo pessoalmente e, em nenhum momento, mesmo no ardor da querela, contesta seu eminente valor guerreiro. Em nome do interesse comum, Aquiles pede ao rei que renuncie a Briséis, sua parte de honra: para desviar a peste do campo grego é preciso devolver a jovem ao sacerdote de Apolo, seu pai. Agamêmnon inclina-se a consentir nisso desde que lhe dêem um géras substituto para que não seja o único, ele, o soberano, a ficar agérastos, privado de géras (12). Caso contrário, lhe será preciso contentar-se com o géras do vizinho, quer se trate de Ajax, Ulisses ou Aquiles, pouco importa — e ele prevê a fúria deles (13). É então que Aquiles explode, e sua cólera revela as verdadeiras razões da querela que opõe os dois homens. Para Aquiles, não há medida comum entre a time que adere à dignidade real, esta timé glorificada por Nestor como proveniente de Zeus (14), e aquela que o guerreiro conquista penando sem repouso "na primeira linha" dos combatentes, onde o risco é total. A seus olhos, Agamêmnon, nessa guerra que é sobretudo sua e de seu irmão, deixa a outros o cuidado de pagar, a todo instante, com sua pessoa, no âmago da guerra ardente: permanecendo na retaguarda, ópisthe ménon (15), ao abrigo do campo, perto das preciosas naves, ele não é homem que se aventure com os srístot numa emboscada nem se empenhe como campeão num duelo sem trégua: "tudo isso. afirma Aquiles dirigindo-se a Agamêmnon, Darece-te A morte, tò dé toi kèr eídetai éinai" (16). Quem. dentre os reis é o mais rei de todos, basiléu tatos, não ultrapassou assim a linha que separa o comum dos homens do universo propriamente heróico, o universo em que o combatente, aceitando de antemão a vida breve, devotou-se inteiro e no mesmo movimento à guerra, ao feito, à glória e à morte. Na prova de honra, para quem adota a perspectiva cavalheiresca própria de Aquiles, é a vida mesma que é a cada vez apostada na competição (17). E como com esta aposta a der- rota significa que se perde tudo de uma vez e para sempre, que se perde a própria existência, o sucesso deve render também um valor que, sendo de outra ordem, não é mensurável pela alna das distinções e homenagens comuns. A lógica da honra heróica é a do tudo ou nada; ela vale fora e acima das hierarquias de posição.
Se Aquiles não é reconhecido como o primeiro e, de certo modo, o único, sente-se reduzido a zero. Também, no exato momento em que ele se proclama, sem ser abertamente contradito, âristo Achaiôn, o melhor dos gregos, em que se gaba de ter carregado todo o peso da guerra no passado e de constituir para o futuro o único baluarte contra o assalto troiano, ele pode apresentar-se não só como desonrado peía ofensa que lhe foi feita, átimos(18); mas, no caso de sua omissão, como o último dos covardes, um menos que nada, outidanós (19), um restolho, errando sem estatuto nem raiz, uma espécie de não-pessoa (20). Entre a glória imperecível, para a qual está predestinado, e o último grau de ignomínia, não há posição intermediária em que Aquiles possa encontrar seu lugar.
Qualquer ofensa à sua dignidade provoca um efeito pendular de um extremo a outro porque é atingido através dele um valor que é preciso aceitar sem reservas, sem comparação, sob pena de depreciá-lo por inteiro. Ofender Aquiles equivale a colocar no mesmo plano o covarde e o valoroso, conferir-lhes, como ele diz, mesma timé (21). Negar ao feito heróico sua função de critério absoluto é, pois, não ver nele a pedra de toque daquilo que um homem vale ou não.
Assim se explica o fracasso de Ulisses, Fénix e Ajax na missão que lhes foi confiada para dobrar a resolução do filho de Peleu e para convencê-lo a renunciar à sua cólera. Embora usem as mesmas palavras, Aquiles não fala a mesma língua dos embaixadores que lhe foram mandados. Em nome de Agamêmnon, convertido aos melhores sentimentos, eles lhe propõem o máximo, e, mais que isso, tudo quanto um rei pode oferecer na oportunidade: primeiramente Briséis, que ele está pronto a devolver, tal como a havia tomado, jurando não ter dormido com ela; tripés, ouro, - bacias, cavalos, mulheres para servas e concubinas; a melhor parte do saque se Tróia for conquistada; e finalmente, por esposa, uma de suas próprias filhas, a escolher, com o dote mais rico e, para acompanhar esse casamento que faria de Aquiles seu genro a soberania sobre sete cidades de seus domínios. Aquiles recusa. Se concordasse, ele se colocaria no próprio terreno de seu adversário. Seria admitir que esses bens, apanágios da timé do rei, signos de seu poder sobre outrem e dos privilégios que acompanham o seu estatuto, chegam, por seu simples acúmulo, a pesar em face do valor autêntico, a contrabalançar o que Aquiles, e unicamente ele, traz ao exército aqueu. Por tudo o que representam, esses presentes lhe são odiosos (22); o próprio excesso de sua magnificência aparece como uma irrisão para quem, quando se empenha no combate, põe em jogo a cada instante, não carneiros, bois, tripés ou ouro, mas sua própria vida, sua vida perecível, sua psuché (23); as riquezas de Agamêmnon e todos os tesouros que enchem o mundo são daqueles que se podem sempre adquirir, trocar, retomar uma vez perdidos, conseguir de um modo ou de outro. É inteiramente diverso o preço que o guerreiro consente em pagar para aceder ao valor: "a vida de um homem não se recupera: ela não se deixa raptar nem apanhar a partir do dia em que saiu das muralhas de seus dentes" (24) . É esta vida — ou seja, ele mesmo, na sua dimensão heróica — que Aquiles punha a serviço do exército; é ela que Agamêmnon insultou tratando o herói como o fez. Que riqueza, que marca de honra, que distinção social teriam aos olhos de Aquiles o poder de recobrar uma psuché a que mais nada no mundo poderia equivaler (ou gàr enwí psuchês antáxion) (25), a partir do momento em que, arriscando-a sem temor em cada um dos encontros de que Agamêmnon foge como da morte, ele a dedicou antecipadamente ao kléos, à glória suscitada pelo feito heróico.
Após Ulisses, o velho Fénix pleiteará em vão diante de Aquiles que, se ele ceder aos presentes, segundo o uso e a razão, se retornar ao combate, os aqueus "prestar-lhe-ão reconhecimento como a um deus" mas que, se recusar, não obterá deles nunca mais honra igual, oukéiliiwmôs times éseai (26), pois ele deveria, retornando nesses últimos dias à batalha, libertá-los enfim do fardo da guerra. Em vão. A cisão entre duas glórias, duas honras está agora bastante nítida no espírito de Aquiles: existe a timé ordinária, essa louvação da opinião pública, disposta a celebrá-lo, a recompensá-lo principescamente como o faz com o rei, sob a condição de ele ceder; existe aquela outra timé, a glória ¡morredoura que seu destino lhe reserva se ele permanecer o mesmo que sempre foi. Pela primeira vez Aquiles recusa claramente a homenagem dos aqueus, que parecia procurar mais que tudo. Dessa time, responde a Fénix, ele não carece, oú ti me táutes chreò times (27), nem mesmo faz caso de Agamemnon e de suas ofertas; ele a considera uma ninharia (28). Ele apenas se preocupa em ser honrado pelo destino de Zeus, Dias aísa (29), este destino de pronta morte, okúmoros (30), que sua mãe Tétis tinha anteriormente evocado nestes termos: "teu destino, aísa, em vez de longos dias só te concede uma vida breve". Mas a pronta morte, quando assumida, tem sua contrapartida: glória imortal, a que a gesta heróica canta.
Essa tensão, que a recusa de Aquiles ilumina plenamente, entre a necessidade de ser socialmente reconhecido para sentir-se existir — a honra comum — e as exigências mais altas da honra heróica — deseja-se também ser reconhecido, mas como um ser à parte, situado num outro plano, que celebrarão os "homens vindouros ' — aparece filigranada nos contextos em que os dois tipos de honra são contudo aproximados a ponto de parecerem confundidos.
Ocorre o mesmo com as palavras que Sarpedon dirige a Glauco no canto XII da Ilíada para exortá-lo a encabeçar os lícios no ataque contra a muralha edificada pelos gregos. Por que. pergunta-Ihe, honram-nos em nosso país, na Licia, com todos os privilégios e honras que cabem a um rei, por que nos olham como se fôssemos deuses? Não será porque nos sentimos, em contrapartida, obrigados a colocar-nos sempre, na batalha, nas primeiras linhas dos lícios, Lukíoisi metei prótoisin, de modo que cada um deles pode proclamar: "Não são desprovidos de glória, akleées, os reis que comandam nossa Licia..., combatem na primeira linha" (31). Filho de Zeus, como Aquiles é filho de Tétis, Sarpedon é, no campo troiano, um desses guerreiros cuja qualidade de valentia, cujo comportamento no combate assimilam a um leão, quando a fera, para saciar a fome que a tortura, só conhece a presa cobiçada. Pouco lhe importa que o rebanho esteja abrigado num estábulo bem fechado, defendido por pastores armados de lanças e assistidos de cães. Se seu coração o impele ao ataque, nada o fará recuar. Ora, das duas coisas, uma: ou ele se apossa de sua presa contra todos e contra tudo, ou então cai ferido por um dardo (32). Dá-se o mesmo com o coração de Sarpedon, em vias de assaltar a muralha que protege os gregos e atrás da qual a morte o aguarda. Sem hesitar, força o parapeito e mergulha na batalha. Quando vê seus companheiros fugirem diante de Pátroclo, vestido com as armas de Aquiles e entregue ao furor da chacina, ele os cobre de vergonha; afirma alto e bom som sua decisão de enfrentar este homem sob cuja mão sabemos ser seu destino perecer (33). Ele o enfrenta para "conhecê-lo", saber quem ele é, isto é, para medir, pela prova do duelo de morte, seu "valor" de combatente (34). Esta atitude — sem se falar da afeição de que o envolve Zeus e do tratamento privilegiado que os deuses reservam ao seu despojo — aproxima Sarpedon de Aquiles; eles se ligam, tanto um como o outro, à mesma esfera de existência heróica e compartilham de uma concepção radical da honra.
Entretanto, se se acredita em Sarpedon, uma total reciprocidade parece existir entre o estatuto de rei e a excelência do guerreiro, entre a timé devida ao primeiro e o kléos ao qual aspira o segundo. Combater na primeira linha, como o fazem Aquiles e Sarpedon, tais seriam, com efeito, o fundamento e a justificação das prerrogativas reais; de modo que se poderia dizer igualmente que, para ser rei, é preciso mostrar-se heróico e que, para mostrar-se heróico, é preciso ter nascido rei. Esta visão otimista, que unifica no mesmo conjunto os múltiplos aspectos da preeminência social e do valor pessoal, corresponde às ambiguidades do vocabulário homérico em que os mesmos termos — agalhós, esthlós, arelé, timé — referem-se, conforme os contextos, à nobre estirpe, à opulência, ao sucesso nas empresas, à bravura guerreira, ao renome, sem distingui-los nitidamente (35).
Nas próprias palavras de Sarpedon deixa-se reconhecer, contudo, traçada levemente, a quebra que, no caso de Aquiles, separava, segundo uma linha de demarcação brutal, a existência heróica com suas aspirações, exigências, ideal próprios, da vida comum, regida pelo código social da honra. Após ter feito compreender que todas as regalias concedidas ao rei, boa mesa, boas terras, bom vinho, lugares de honra, fama, são o prêmio pago aos homens de guerra pelos serviços prestados por sua excepcional valentia no campo de batalha, Sarpedon acrescenta uma observação que, desvendando a verdadeira dimensão do feito heróico, derruba toda a sua argumentação anterior: "Se o escapar a esta guerra, declara, nos permitisse viver a seguir eternamente, abrigados da velhice e da morte, não seria por certo eu quem combateria na primeira linha nem quem te enviaria para a batalha em que o homem adquire a glória. . . Mas, como nenhum mortal pode escapar do traspasso, avante, demos glória a um outro ou que ele no-la dê (36). Não são, pois, nem as vantagens materiais nem o primado de condição nem as marcas de honra que têm o poder de levar um homem a empenhar sua psuché em duelos sem trégua onde se conquista a glória. Se apenas se tratasse' de ganhar os bens que se gozam em vida e que vos abandonam com ela, não se encontraria um único guerreiro, segundo Sarpedon, que não se escondesse no momento em que fosse preciso arriscar-se a tudo perder no jogo. A verdadeira razão do feito heróico reside alhures; não ressalta de cálculos utilitários nem da necessidade de prestígio social; poder-se-ia dizer que ela é de ordem metafísica; ela é própria da condição humana, condição que os deuses não fizeram apenas mortal mas também submetida, como toda criatura deste mundo, após a floração e a plenitude da juventude, ao declínio das forças e à decrepitude da idade. O feito heróico enraíza-se na vontade de escapar ao envelhecimento e à morte, por "inevitáveis" que sejam, de a ambos ultrapassar. Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens celebrarão como um modelo de "glória imorredoura". O que o herói perde em honras prestadas à sua pessoa viva, ao renunciar à longa vida para escolher a pronta morte, ele o torna a ganhar cem vezes mais na glória de que fica aureolada, por todos os tempos vindouros, sua personagem de defunto. Numa cultura como a da Grécia arcaica, em que cada um existe em função de outrem, sob o olhar e pelos olhos de outrem, em que as posições de uma pessoa são tanto melhor estabelecidas quanto mais longe se estende sua reputação, a verdadeira morte é o esquecimento, o silêncio, a obscura indignidade, a ausência de fama (37). Ao contrário, existir é — esteja-se vivo ou morto — ser reconhecido, estimado, honrado; é sobretudo ser glorificado: ser objeto de uma palavra de louvor, de uma narrativa que conta, sob a forma de uma gesta, retomada e repetida sem cessar, um destino por todos admirado. Neste sentido, pela glória que ele soube conquistar devotando sua vida ao combate, o herói inscreve na memória coletiva do grupo sua realidade de sujeito individual, exprimindo-se numa biografia que a morte concluiu e tornou inalterável. Pelo canto público dos feitos a que ele se deu por inteiro, o herói continua, além do traspasso, presente, a seu modo, na comunidade dos vivos. Tornada lendária, sua figura tece, associada com outras, a trama permanente de uma tradição que cada geração deve aprender e tornar sua para aceder plenamente, através da cultura, à existência social.
Ultrapassando as honras corriqueiras, as dignidades de posição, efêmeras e relativas, aspirando ao absoluto da kléos áphthiton, a honra heróica pressupõe a existência de uma tradição de poesia oral, repositório da cultura comum, que funciona para o grupo como memória social. No que se convencionou denominar, para encurtar, o mundo de Homero, honra heróica e poesia épica são indissociáveis: não há kléos senão cantado, e o canto poético, quando não celebra a raça dos deuses, só tem por objeto evocar os kléa andrôn, os altos feitos gloriosos realizados pelos homens de antanho e perpetuar-lhes a lembrança, tornando-os mais presentes aos ouvintes que sua pobre existência cotidiana (38). A vida breve, a façanha, a bela morte só adquirem sentido quando encontram lugar num canto pronto a acolhê-las para as magnificar e conferem ao próprio herói o privilégio de ser aoídimos, assunto de canto, digno de ser cantado. É pela transposição literária do canto épico que a personagem do herói adquire tal estatura, a densidade de existência e a perenidade que, apenas elas, podem justificar o extremo rigor do ideal heróico e os sacrifícios que ele impõe. Na exigência de uma honra para além da honra, existe portanto uma dimensão "literária". Não que a honra heróica seja uma pura convenção de estilo e o herói uma personagem inteiramente fictícia. A exaltação da "bela morte"' em Esparta e Atenas, em plena época clássica, mostra o prestígio que o ideal heróico manteve e seu impacto sobre os costumes até em contextos históricos tão disfames do mundo de Homero como o da Cidade. Mas, para que a honra heróica permaneça viva no seio de uma civilização, para que todo o sistema de valores permaneça marcado pelo seu selo, é preciso que a função poética, mais do que objeto de divertimento, tenha conservado um papel de educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine, se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes, crenças, atitudes, valores de que é feita uma cultura. É unicamente a poesia épica, por seu estatuto e função, que pode conferir ao desejo de glória imperecível, de que é habitado o herói, tal base institucional e legitimação social, sem as quais não passaria de uma fantasia subjetiva. Já houve quem se espantasse com uma ambição de sobrevivência que se reduziria, acreditava-se, a uma imortalidade "literária". Seria desconhecer as diferenças que separam a pessoa e a cultura gregas arcaicas das nossas. Entre a pessoa antiga, pessoa para outrem, implantada na opinião pública e sua vontade de sobreviver em "glória imperecível"', e a pessoa de hoje — o eu interiorizado, único, separado — e sua esperança de sobrevivência sob forma de uma alma singular e imortal, existem as mesmas relações estruturais: a epopeia desempenha o papel de paideía, exaltando os heróis exemplares, assim como os gêneros literários "puros" como o romance, a autobiografia, o diário íntimo o fazem hoje.
Entre todas as personagens encenadas pela Ilíada, Aquiles é a única que nos é descrita praticando o canto poético (39). No momento em que os embaixadores de Agamêmnon chegam perto do campo dos mirmidões, Aquiles está em sua tenda. Acompanhando-se com a cítara, canta para si e para Pátroclo, sentado diante dele em silêncio. Que é que Aquiles, em tais circunstâncias, se compraz em cantar? Aquilo mesmo que os aedos, e Homero primeiramente, cantam nos poemas como a Ilíada; "aéide d'etra kléa andrôn" (40), ele canta os feitos dos heróis. O modelo do guerreiro heróico que, escolhendo a vida breve e a glória imperecível, encarna uma ideia tão elevada da honra (a ponto de, em seu nome, recusar, juntamente com os presentes do rei, a limé de seus companheiros de armas) também é aquele figurado pela grande gesta épica no momento decisivo de sua trajetória ao cantar ele mesmo a gesía dos heróis. Artifício literário, procedimento "em abismo", certamente! (41). Mas a lição do episódio é clara: os feitos de Aquiles, celebrados por Homero na Ilíada, para existirem inteiramente aos olhos do herói que os deseja executar, devem refletir-se, prolongar-se num canto que consagre sua glória. Enquanto personagem heróica, Aquiles só tem existência para si mesmo no espelho do canto que lhe reflete sua própria imagem e que o faz sob forma de kléa, destes feitos aos quais ele escolheu sacrificar a sua vida para tornar-se para sempre aquele Aquiles que Homero canta na Ilíada e que todos os gregos cantarão a seguir.
Ultrapassar a morte é também escapar da velhice. A morte e a idade avançada equiparam-se para os gregos (42). Tornar-se velho é ver pouco a pouco o tecido da vida em si mesmo desfazer-se, corromper-se, roído por este mesmo poder de destruição, esta kère, que conduz ao traspasso. Hébes ánthos, diz Homero, fórmula, que, retomada e desenvolvida pelos poetas elegíacos, como foi demonstrado, inspirou de maneira muito direta a redação dos epitáfios funerários, em louvor dos guerreiros caídos na "flor da juventude", isto é, mortos no combate (43). Assim como a flor se fana, os valores pelos quais a vida se manifesta: vigor, beleza, graça, agilidade, quando já iluminaram um homem com seu fulgor durante sua "brilhante juventude1', aglaòs hébe, em vez de permanecerem firmes e estáveis em sua pessoa, logo murcham e se esvaem no nada. A flor da idade — quando se está na plena maturidade de sua força vital — é esta floração primaveril de que, no inverno de sua vida, antes mesmo de baixar ao túmulo, o ancião já se acha despojado (44). Tal é o sentido do mito de Thon. De que poderia servir torná-lo imortal se não o preservassem também do envelhecimento? Mais avisado, dirigindo-se a Glauco, Sarpedon sonha ser subtraído, a ura tempo, à idade avançada e à morte, encontrar-se tanto agéraos quanto athánatos (45); é então, apenas então, que se poderia dizer do feito guerreiro ser ele um jogo que não vale a pena. Pois o pobre Titon, afundando-se cada dia mais na senilidade. não passa de um espectro de vivo, um cadáver animado no reduto celeste onde Eôs teve de o relegar; seu envelhecimento sem-fim o destina a uma ilusão de existência que a morte destruiu inteiramente a partir do interior (46).
Cair no campo de batalha desvia do guerreiro este inexorável declínio, deterioração de todos os valores que compõem a aretê viril. A morte heróica colhe o combatente quando ele está no seu acme, seu acmé, homem já realizado (anér), perfeitamente intacto, na integridade de uma potência vital ainda pura de qualquer decrepitude. Aos olhos dos homens vindouros, cuja memória habitará, ele se acha, pelo traspasso, fixado no fulgor de uma juventude definitiva. Neste sentido, o kléos áphtliíton, que o herói conquista pela vida breve, abre-lhe também o acesso a uma inalterável juventude (47). Como Héraldes deve passar pela pira do Oeta para desposar Hebe e qualificar-se assim como agéraos (48), é a “bela morte” que torna o guerreiro conjuntamente athánatos e agéraos. Na glória ¡morredoura em que o canto de seus feitos o introduz, ele ignora a velhice do mesmo modo que escapa, tanto quanto pode um homem, à aniquilação da morte. Esse tema do guerreiro, que se assegura para sempre a juventude quando aceita perder a vida no combate, reencontra-se modulado de outra maneira na retórica da oração fúnebre ateniense. Mas, como observa Nicole Loraux, é na epopeia que é preciso buscar-lhe a origem; quando Atenas o emprega para celebrar, quando dos funerais públicos, aqueles que, por amor cívico, caíram pela pálria durante o ano, ela projeta na figura do hoplita, soldado-cidadão, adulto e pai de família, a imagem heróica do guerreiro da epopeia que é, primeiramente, um jovem. Certamente, a oposição na sociedade homérica dos kouroi e dos géronles não se limita apenas a uma diferença de idade, e os géronles não são todos anciãos, no sentido que daríamos a este termo. Não é menos verdade que é nítida a clivagem entre dois tipos de atividades e competências: as que, concernindo à guerra, evidenciam a força dos braços e o ardor valente, e aquelas que, dependendo da reflexão, requerem o bem falar e o espírito prudente. Entre o bom fazedor de feitos (prektèr érgon) e o bom dizedor de casos (múthon rhetêr), a fronteira é inicialmente a da maior ou menor idade (49). A razão do géron opõe-se à cabeça louca dos jovens, designados pelo termo hoplóteroi, que define sua juventude pela aptidão para portar armas (50); e, se o "orador sonoro" de Pilos, o velho Nestor, é hábil como ninguém em prodigalizar seus sábios conselhos, se sua experiência em matéria de combate se manifesta em palavras sábias mais que em ações brilhantes, é que sobre ele a idade pesa e ele deixou de ser um kouros (51). Conselho, palavras (boulê, múlhoi), tal é a tarefa, tal o privilégio dos gérantes; aos mais jovens (neóterot) cabe atirar a lança e assegurar-se nas suas próprias forcas (52). Daí a fórmula que pontua, como uma arenga, a maior parte das longas digressões que Nestor impõe aos mais jovens para admoestá-los ou para exortá-los a uma luta da qual, distanciado, ele só participa um pouco: "Eith hás hebooimi bíe âé moi êmpeâos eie, Oh, se eu ainda fosse jovem, se meu vigor fosse inteiro" (53). É seu perdido valor guerreiro que Nestor lamenta juntamente com sua juventude esvanecida. Neste contexto, Hebe designa menos uma faixa etária precisamente definida que um período de vida em que há condições de ultrapassar-se, em que o sucesso, o bom resultado, o kudos, parecem ligados aos vossos passos, associados às vossas empresas (54) mais prosaicamente, em que há plena posse das forças. Em primeiro lugar, força física certamente, mas que também implica a leveza do corpo, a agilidade e segurança dos membros, a rapidez dos movimentos (55). Ter a hébe é reunir em sua pessoa todas as qualidades que constituem o guerreiro completo. Quando Idomeneu, guerreiro temível mas já grisalho (mesapólios) (56), confessa seu pânico diante de Eneias que marcha ao seu encontro, e pede socorro a seus companheiros, justifica-se nestes termos: "kài d'échei hébes ánthos, hó te krátos esii mégtston, ele tem a flor da juventude, o que é o krátos supremo" (57). De fato, por valente que seja, Idomeneu sente o peso da idade: "Suas pernas movendo-se não têm mais a mesma segurança (ou gàr ét' émpeãa guia), quer se trate de saltar em consequência de um tiro de lança ou então de se esqui- var de um golpe. . .; para fugir, seus pés não mais o carregam tão depressa para fora do combate" (58). Como ressaltou E. Benveniste, krátos não designa a simples força física como o fariam bíe ou ischús, mas a potência superior que permite ao guerreiro dominar sem adversário, triunfar dele e vencê-lo na luta. Neste sentido, a arístéia guerreira está como que incluída na hébe. Compreendem-se então melhor os laços que unem, na perspectiva heróica, a morte do guerreiro e a juventude. Como existe, ao lado da honra comum, uma honra heróica, ao lado da juventude comum — a mera juventude — existe uma juventude heróica que brilha no feito e encontra a morte em combate sua realização. Passemos neste ponto a palavra a Nicole Loraux que viu e disse as coisas tão bem quanto possível: "A epopeia homérica dá duas versões muito diferente da morte o Kouros. Não há com que se espantar: simples qualidade entre os heróis, a juventude resta mais prosaicamente para aqueles que os deuses favorecem menos, um dado fisiológico. Se a morte de jovens combatentes é frequente na Ilíada, ela não é sempre pateticamente gloriosa (...) No primeiro caso, a juventude não passa de um componente entre outros, que não distingue o morto da massa imensa e finalmente inessencial das vítimas. Noutros termos, como qualidade, a juventude não preside aos últimas instantes do guerreiro, que morre de modo viril mas sem brilho particular. Na versão heróica, pelo contrário, o traspasso realiza-se sob o signo de hébe; mesmo que a juventude não tenha sido explicitamente concedida ao guerreiro, ele a conquista no momento preciso em que perde; hébe é a última palavra, para Pátroclo como para Heitor, cuja alma voa para o Hades, chorando seu destino, abandonando a força e a juventude (59). Na realidade, esta menção da juventude perdida e chorada mas por isso mesmo enaltecida é recusada a todos os outros combatentes. Hébe toma figura de carisma, reservado à nata dos heróis — o mais valoroso adversário de Aquiles é aquele que, mais que um amigo, lhe é um duplo" (60).
A hébe que Pátroclo e Heitor perdem com a vida e que possuíam, portanto, de modo mais completo que os outros kouroi de idade avançada, é aquela mesma que Aquiles se assegura escolhendo a vida breve, pela qual, através da morte heróica, a pronta morte, ele permanece para sempre revestido. Se a juventude se manifesta na pessoa do guerreiro vivo, primeiramente pelo vigor, bíe, potência krátos. fortaleza, alké, no cadáver do herói estendido sem força e sem vida, seu brilho transparece na excepcional beleza de um corpo doravante inerte. Em Homero, o termo sòma designa precisamente o corpo cuja vida se retirou, o despojo de um ser defunto. Enquanto o corpo está vivo, é visto como uma multiplicidade de órgãos e membros animados pelas pulsões que lhe são próprias: é o lagar em que se desdobram e às vezes se afrontam impulsos, forças contrárias. É com a morte que, abandonado por elas, o corpo adquire sua unidade formal. De sujeito e suporte de ações diversas, mais ou menos imprevistas, torna-se puro e simples objeto para outrem: e primeiramente objeto de contemplação, espetáculo para os olhos, a seguir objeto de cuidados, de deploração, de ritos funerários (61). O mesmo guerreiro que aparecia durante a batalha como ameaça, terror ou reconforto, provocando o pânico e a fuga ou excitando o ardor e o ataque, a partir do momento em que jaz no campo de batalha, oferece-se aos olhares como uma simples
figura cujos traços são identificáveis: é certamente Pátroclo, é certamente Heitor, mas reduzidos à sua aparência exterior, a este aspecto singular de seu corpo que os torna reconhecíveis por outrem. Sem dúvida, no homem vivo, a excelência, a graça, a beleza desempenham seu papel de elementos da pessoa. Mas, na figura do guerreiro em ação, estes aspectos ficam como que eclipsados por aqueles que a batalha coloca em primeiro plano. O que resplandece no corpo do herói é menos o brilho gracioso da juventude (chariestúte hébe) (62) que o do bronze que o reveste, o faiscar de suas armas, armadura e capacete, a chama que emana de seus olhos, a radiação do ardor que queima (63). Quando Aquiles reaparece no campo de batalha após sua longa ausência, um atroz terror se apossa das troianos, vendo-o "brilhante em sua armadura" (64). Diante das portas Ceias, Príamo geme, empalidece, suplica a Heitor que venha ter com ele sob a proteção das muralhas: é o primeiro que acaba de perceber, irrompendo na planície, resplandecente como o astro que vem no outono e cujos fogos fulgentes faíscam no meio das estrelas sem-número, na sombra da noite. Chamam-no o cão de Orion e seu brilho é sem-par. . . "O bronze luz de um brilho semelhante em volta do peito de Aquiles corrente" (65). E quando o próprio Heitor vê Aquiles, cujo bronze resplandece "semelhante ao fulgor do fogo flamejante ou do sol levante", o terror o apanha; põe-se em fuga (66). É preciso distinguir entre esta radiação ativa que emana do guerreiro vivo, provocando terror, e a espantosa beleza de que se reveste o corpo do herói abatido como se fosse o brilho mesmo de sua juventude — uma juventude que a idade não pode mais macular. Mal a psuché de Heitor deixou seus membros, "abandonando sua força e juventude", Aquiles lhe separa as armas dos ombros. Os aqueus acorrem então de todos os lados para ver o inimigo que mais que qualquer outro lhes fez tanto mal e para desferir ainda golpes no seu cadáver. Aproximando-se do herói que não é mais, diante deles, senão soma cadáver insensível e inerte, eles o contemplam: "Admiram o porte, a beleza invejável de Heitor, hot hai tlieésanto phuèn kàì eidos agetòn Hékioros" (67). Reação para nós surpreendente, se o velho Priamo não a tivesse desvendado, opondo a morte deplorável e horrenda do velho à bela morte do guerreiro, ceifado em sua juventude. "Ao jovem guerreiro, néoi, morto pelo inimigo, dilacerado pelo bronze agudo, tudo convém, pânfepéoiken; tudo é belo, pama kalá — na- quilo que ele mostra, mesmo morto" (68). No espírito de Priamo, a evocação do jovem guerreiro estendido morto em sua beleza, longe de encorajar Heitor a enfrentar Aquiles, deve, por contraste, enternecê-lo acerca do horror do traspasso que espera um velho como ele se, privado do amparo de um filho como o seu, vier a perecer sob a espada ou a lança dos guerreiros adversos. O quadro repugnante que pinta o velho rei exprime de maneira impressionante o caráter escandaloso, antinatural, da morte guerreira, a morte "vermelha", quando ela fere um ancião cuja majestade exige um fim digno e sereno, quase solene, em sua casa, na paz doméstica, rodeado pelos seus. Os ferimentos, o sangue, a poeira que, no cadáver do jovem herói, evocavam sua valentia e ressaltavam sua beleza com um toque mais viril, no caso de uma cabeça encanecida, de uma barba branca, de um corpo de velho, adquirem, graças à sua fealdade horrenda, um aspecto quase obsceno: Priamo não se vê apenas ferido mortalmente às portas de sua habitação, mas, desmembrado, devorado pelos cães — não por cães quaisquer .— mas suas próprias bestas domésticas que ele mesmo alimentava em seu palácio e que, caindo na selvageria, dele vão fazer uma presa, de suas carnes repasto, vão devorar seu sexo, e estender-se, saciadas, no vestíbulo cuja guarda outrora ele lhes confiava. "Cães que se vêem ultrajar uma cabeça branca, uma barba branca, as partes vergonhosas de um velho massacrado, nada é mais digno de piedade" (69). Evoca Priamo um mundo às avessas, todos os valores sem pé nem cabeça, a bestialidade instalada no seio do lar, a dignidade do velho tornada irrisão na fealdade e impudicícia, a destruição de tudo o que no cadáver pertence propriamente ao homem. A morte sangrenta, bela e gloriosa quando inteiramente jovem, elevava o herói acima da condição humana; arrancava-o do traspasso comum conferindo a seu fim um caráter de fulgurante sublimidade. A mesma morte, sofrida pelo velho, rebaixa-o aquém do homem; ela torna seu decesso, em vez da sorte comum, uma horrível monstruosidade. Tirteu, num dos fragmentos que chegaram até nós, imita esta passagem da Ilíada, cujos termos por vezes ele retoma exatamente. As diferenças, frequentemente ressaltadas no pormenor e no quadro geral (70), referem-se ao próprio contexto de Esparta: o hoplita que, na falange, combate ombro a ombro, escudo a escudo, não é mais o campeão da epopeia homérica; pede-se-lhe que se mantenha firme, sem abandonar seu posto e não que se ilustre em combate singular; se "morrer é uma bela coisa, tethnamenai gàr kalón, quando se cai na primeira linha como homem de coragem" (71), é preciso ainda que seja defendendo a terra da pátria; é sob esta condição que a glória do defunto permanece ¡morredoura e, o herói, imortal — athánatos — apesar de jazer sob a terra (72); deste ponto de vista, não poderia haver entre honra heróica e a simples honra um corte tão radical quanto antes: não há compatibilidade alguma, em Esparta, entre a vida longa e o feito guerreiro, entre a glória, tal como a concebe Aquiles, e a idade avançada. Se os combatentes, que souberam manter-se firmes em seu posto, tiveram também a sorte de retornar sãos e salvos, compartilham durante toda a sua vida as mesmas honras e a mesma glória que aqueles que caíram; envelhecidos, sua excelencia lhes vale a homenagem de toda a Cidade'* (73). Esparta utiliza assim o prestígio do feito do guerreiro épico, da honra heróica, como instrumento de competição e promoção sociais. Ela institui, desde o agogé, espécie de regulamento codificado da glória e da vergonha, dosando e distribuindo, segundo os méritos guerreiros, louvor ou descrédito, respeito ou desprezo, marcas de estima ou medidas de denegrimento, condenando os "trementes" — trésantes — às ironias humilhantes das mulheres bem como à infâmia — óneidos kdi atimíe (74) — de todo o corpo social. Por outro lado, em Tirteu, o "mais velho", palaiotêros, o mais venerável, geraiós, cuja morte contrasta com a do jovem — nêos —, não é o infeliz ancião evocado por Priamo para comover seu filho, mas um hoplita corajoso, um ancião cheio de ardor que combateu e pereceu "na primeira linha", no lugar que toca normalmente, na falange, aos néoi. Poder-se-ia pensar que seu sacrifício só mereça maior exaltação. Pelo contrário, se o fragmento 6 afirmava que era belo — kálón — morrer na primeira linha, este mesmo traspasso torna-se feio — aischrón — para o mais velho que cai diante dos néoi. £ certo que, na "fealdade" que o termo aischrón denuncia, há um matiz de reprovação "moral": trata-se, pelo horror do quadro, de exortar os néoi a não ceder seu lugar na primeira linha aos mais velhos. Mas todo o contexto, a oposição aischrón — kalón, e o caráter "espetacular" da descrição em seu conjunto mostram a persistência de uma visão "estética", no sentido mais forte e amplo do termo, da morte heróica em sua associação íntima com a hébe. "Pois, na verdade, é coisa feia que ura homem mais velho, caído na primeira linha, jaza à frente dos jovens, cabeça branca e barba gris, tendo exalado o seu ardor valente no pó, segurando o sexo ensanguentado nas mãos — horror para os olhos, vergonha para contemplação, aischrâ íà g'ophthalmoìs kaì nemesetòn idem — e ainda tendo o corpo nu. Mas, para os jovens, tudo convém — néoisi de pánt' epéoiken — enquanto está com eles a brilhante flor da amável juventude, objeto de admiração para os homens, andrási rnèn teetòs idem, de desejo para as mulheres, eratòs de gunaixí, enquanto se está vivo, zoòs eón, mas beleza quando se está morto na primeira linha — kalòs d'en promáchoisi pesón" (75). Não devemos admitir, como sugere Christopher M. Dawson, uma dupla dimensão da beleza tanto da honra quanto da juventude? No fim de sua análise do texto de Tirteu, Dawson escreve: "Sensuous beauty may come in life, but true beauty comes in heroic death" (76).
Bela, a morte heróica. Ê sem dúvida a ela que se refere a regra instituída, diz-se, por Licurgo, para o uso dos guerreiros lacedemônios — deixar longa esvoaçar sua cabeleira, sem cortá-la, e dela cuidar muito especialmente na véspera do combate. A cabeleira é, na cabeça do homem, comparável à flor de sua vitalidade, a floração de sua idade. Ela exprime a condição de vida daquele cujas têmporas coroa, e é ao mesmo tempo uma parte do corpo que, por seu crescimento próprio, sua vida independente — cortam-na, ela cresce, conserva-se sem se corromper — é suscetível de vos representar: a cabeleira é oferecida, dela se faz dom como de si mesmo. Se o ancião se define por sua cabeça e barba brancas, a kébe marca-se também pela primeira floração do pêlo da barba, pela maturidade do penteado. É conhecida a relação de kouros com ketro: cortar-se os cabelos; de modo mais geral, as grandes fases da vida humana, as mudanças de condição são pontuadas pelo corte e pela oferenda de uma mecha de cabelos, até mesmo de toda a cabeleira, como no caso da recém-casada em Esparta. Na Ilíada, os companheiros de Patroclo e o próprio Aquiles cortam sua cabeleira sobre o cadáver de seu amigo defunto antes de dá-lo às chamas. Vestem-lhe o corpo inteiro com seus cabelos como se o revestissem para a sua última viagem, com sua jovem e viril vitalidade. "O cadáver está vestido por inteiro com os cabelos que eles cortaram de suas frontes e que vieram jogar em seguida sobre ele" (77).
Seus companheiros ornam o morto com o que neles exprime sua natureza de guerreiros ardentes, ao passo que sua mulher, se ele a tem, ou sua mãe — no caso, por exemplo, de Heitor — oferecendo-lhe as vestes preciosas que elas lhe teceram, ligam-no até no além a esse universo feminino ao qual o ligava seu estatuto de filho e esposo. Quando Xenofonte interpreta o porte dos cabelos longos como maneira de tornar os guerreiros espartanos "maiores, mais nobres e mais terríveis" (78), ele não contradiz o valor de beleza que esta prática lhes confere; enfatiza apenas que não se trata de uma beleza qualquer, uma beleza sensual como a de Paris, ou uma beleza feminina, mas da beleza propriamente guerreira que já procuravam, sem dúvida, os combatentes homéricos, aqueles que a epopeia chama aqueus cabeludos, káre komóontes Achaiói (79).
Heródoto relata-nos um episódio significativo (80). Antes de sondar a resistência do punhado de lacedemônio que guardam as Termopilas, Xerxes envia Demarato como espião. Ao voltar, Demarato faz seu relatório. Ele viu os lacedemônios praticando tranquilamente exercícios corporais e ocupando-se em pentear os cabelos. O rei, estupefato, pede explicações. "Tal é o costume de Esparta, responde Demarato; quando estão em vias de expor suas vidas, esses homens cuidam de suas cabeleiras". Â véspera do combate em que a aposta é a vida (e nas Termópilas a alternativa, que é a lei de Esparta, vencer ou morrer, reduz-se talvez exclusivamente a um dos termos: bem morrer), é uma só coisa impressionar o inimigo com um ar "grande, nobre, terrível" e preparar-se para ser, no campo de batalha, um belo morto, semelhante em sua juventude ao Heitor admirado pelos gregos (81).
Se juventude e beleza refletem, no corpo do herói abatido, o brilho desta glória pela qual ele sacrificou a vida, ultrajar o cadáver inimigo adquire um novo significado. Charles Paul Segai e James M. Redfield enfatizaram a importância do tema da mutilação dos corpos na Ilíada: vê-se que ele toma, com o passar dos cantos, uma importância crescente, para culminar no furor demente das sevícias que Aquiles inflige ao cadáver de Heitor. Não se pode duvidar de que o poeta faz assim compreender as ambiguidades da guerra heróica. Quando os combates tornam-se mais duros, a confrontação cavaleiresca, com suas regras, seu código, seus interditos, transforma-se em luta selvagem em que a bestialidade, escondida no seio da violência, aflora nos dois campos. Não basta mais triunfar num duelo leal, confirmar sua arelé confrontando-a com a de outrem; morto o adversário, encarniça-se, como se fosse um predador agarrado à sua presa, sobre o cadáver que, por não se poder comer cru — desejo que é, aliás, formulado — faz-se desmembrar, dando-se as suas carnes à devoração dos cães e pássaros interpostos. O herói épico está assim duplamente ameaçado de perder sua figura humana; se perece, terá talvez o corpo deixado às bestas, não na bela morte mas no mesmo horror monstruoso que o rei Priamo evocava como um pesadelo; se mata, ele se arrisca, ao mutilar o corpo de sua vítima, a cair nessa mesma selvageria que o ancião temia nos seus cães. Tudo isso é verdadeiro, mas é preciso perguntar se a ligação entre o ideal heróico e a mutilação dos corpos não é mais estreita, se a bela morte do herói, abrindo-lhe o caminho a uma glória ¡morredoura, não atrai como sua contrapartida necessária, seu avesso sinistro, o afeamento, o aviltamento do corpo do adversário defunto, para vedar-lhe o acesso à memória dos homens vindouros. Se, na perspectiva heróica, é pouco importante permanecer em vida, sendo essencial o bem morrer, na mesma perspectiva o essencial não pode ser tirar a vida do inimigo, mas despojá-lo da bela morte.
A aikía (homérico: aeikeíe), a ação de aikízein, de ultrajar o cadáver, apresenta-se até no plano lingüístico (82) como a denegação deste pánt'epéoiken, que Homero e Tirteu aplicavam ao corpo de néos exposto no campo de batalha, a substituição nele do pùnta klá pelo aischrón. Aikízein é também aischúnein, enfear, aviltar (83). Trata-se de fazer desaparecer, no corpo do guerreiro defunto, os aspectos de juventude e beleza viris que nele se manifestam como signos visíveis da glória. Procura-se substituir a bela morte do herói, aureolado de hébe, pelo fim horrendo cuja imagem rondava o espírito do velho Priamo; um cadáver em que toda juventude, beleza, virilidade, toda figura humana enfim foram apagadas (é preciso entender neste sentido, tanto em Tirteu como em Homero, a estranha alusão ao sexo devorado ou segurado em mãos cheias de sangue). Por que um tal encarniçamento contra o que Apolo denomina kophè gaia (84), uma argila insensível, por que em um despojo, roupa velha vazia, querer desalojar a pessoa do inimigo cuja psuché já se retirou, se não pelo fato de que sua pessoa permanece ligada a este corpo defunto e ao que ele representa por seu aspecto, seu eidos? Para obter o kléos áphlhiton, o herói precisa de que seu nome e seus feitos sejam conhecidos pelos homens que virão e que subsistam na sua memória. A primeira condição é que sejam celebrados num canto que não perecerá; a segunda, que seu cadáver tenha recebido a sua parte de honra, o geras thanómon (85), que ele não tenha sido privado da timé que lhe é devida e que o faz penetrar até o fundo do traspasso e ter acesso a um novo estado, ao estatuto social de morto, permanecendo portador dos valores de vida, juventude, beleza que o corpo encarna e que foram, nele, consagrados pela morte heróica. Que significa penetrar até o fundo do traspasso? O golpe fatal que fere o herói liberta sua psuché: ela deixa os seus membros, abandonando a força e a juventude. Mesmo assim ela não franqueia as portas da morte. A morte não é uma simples privação da vida, um decesso; é uma transformação em que o cadáver é ao mesmo tempo o instrumento e o objeto, uma transmutação do sujeito que se opera no corpo e pelo corpo. Os ritos funerários realizam essa mudança de estado: a seu íermo, o indivíduo deixou o universo dos vivos, como o corpo consumido esvaneceu-se no além, como a sua psuché chegou sem retorno às margens do Hades. O indivíduo desapareceu então da rede das relações sociais em que a sua existência constituía uma malha; desse ponto de vista, ele é doravante uma ausência, um vazio; mas continua a existir num outro plano, numa forma de ser que escapa à usura do tempo e à destruição. Ele existe pela permanência de seu nome e pelo brilho de sua fama, que persistem presentes não só na memória daqueles que o conheceram em vida, mas também para todos os homens vindouros. Esta inscrição tia memória social toma duas formas, solidárias e paralelas: o herói é memorizado no canto épico que, para celebrar sua glória imortal, coloca-se sob o signo de Memória, faz-se memória, tornando-o memorável; ele o é também no mnêma, o memorial que constituem, no fim do ritual funerário, a edificação do túmulo e o erguimento de um sema, relembrando aos homens por vir, "esso meno hi", como o faz o canto épico, urna gloria assim assegurada de não mais perecer (86). Graças à sua fixidez, à sua estabilidade, a estela contrasta com o caráter transitório e passageiro dos valores que iluminam o corpo humano durante a vida. "Ela permanece imóvel, imutável émpedon, uma vez levantada na tumba de um homem ou de uma mulher mortos" (87). Êmpedos: intacto, imutável — se as qualidades que constituem a arisieía guerreira: o ardor, menos, a força, bía, os membros, guia, possuíssem tal caráter de émpedos (88), o herói guerreiro estaria ao abrigo da velhice. Na morte heróica, ele não teria que perder sua juventude e beleza para apropriar-se delas de modo definitivo no outro mundo. O mnêma traduz, à sua maneira, na imutabilidade de sua matéria e forma, na continuidade de sua presença, o paradoxo dos valores de vida, juventude e beleza que somente são assegurados quando perdidos, que somente são possuídos para sempre quando se deixa de existir.
O tratamento do cadáver no ritual funerário destaca-se de um paradoxo de mesma ordem. O corpo é inicialmente embelezado: lavado com água morna para desembaraçá-lo daquilo que o conspurca e suja; suas feridas, untadas com um ungüento, são apagadas; sua pele, esfregada com óleo brilhante, adquire mais brilho; perfumado, o despojo é ornado com tecidos preciosos, exposto sobre um catafalco à vista dos que lhe são chegados para a deploração (89). Em seguida, o cadáver é, na tradição homérica, queimado numa pira cujas chamas devoram tudo o que, nele, é feito de carne e sangue, isto é, a um tempo comestível e sujeito à corrupção, o que então se liga a esta forma efêmera de existência em que vida e morte estão inextricavelmente misturadas. Subsistem apenas os "ossos brancos", incorruptíveis, não inteiramente calcinados, fáceis de reconhecer; separados das cinzas da pira, são reunidos e depostos numa tumba.
Comparando-se o ritual do sacrifício e as práticas funerárias, verifica-se que "a parte do fogo" se inverte: na pira fúnebre, o fogo consome o que, no sacrifício, é preservado para ser consumido pelos homens — as carnes da vítima, pesadas de gordura — parte dos "homens mortais'' que com elas se repastam, tendo necessidade de comer para subsistir segundo as exigências de uma vida perecível que é preciso nutrir indefinidamente para que não se apague. Os "ossos brancos" do animal sacrificado, não comestíveis e incorruptíveis, não comestíveis porque incorruptíveis, são queimados no altar como parte dos deuses imortais aos quais eles chegam sob a forma de fumaças perfumadas. Esses mesmos ossos brancos, nos funerais, permanecem sob a terra como o vestígio — prolongado pelo túmulo, o sema, a estela — que a pessoa do morto deixa cá embaixo como forma na qual, em sua ausência, ele permanece presente no mundo dos vivos. Pelo contrário, o que o fogo da pira fúnebre envia para o invisível quando o devora, com as carnes e o sangue perecíveis, é toda a aparência física, aquilo que se dá a ver no corpo: porte, beleza, juventude, forma singular, brilho, cabeleira; nesses aspectos do corpo encarnam-se os valores ao mesmo tempo estéticos, religiosos, sociais, pessoais, que definem, aos olhos do grupo, o estatuto de um indivíduo singular. Tais valores são tanto mais preciosos em sua fragilidade quanto, mal desabrochados, a própria vida que os fazia florescer logo os fez murchar. A forma visível do corpo, tal qual é apresentada como espetáculo no início dos funerais quando exposta, só pode ser salva da corrupção ao desaparecer no invisível. Beleza, juventude, virilidade do cadáver, para pertencer-lhe definitivamente e ligar-se à figura do morto, exigem que o despojo tenha deixado de existir, assim como o herói tenha deixado de viver.
Tal finalidade das práticas funerárias revela-se com maior nitidez exatamente ali onde fazem falta, e sobretudo onde são ritualmente denegadas, nos procedimentos de ultraje do cadáver inimigo. Propondo-se impedir que o adversário aceda ao estatuto de morto glorioso, que seu fim heróico fez merecer, o ultraje permite-nos melhor compreender, peta natureza das sevícias que ele efetua, o caminho tomado normalmente pelos ritos funerários para imortalizar o guerreiro pela bela morte. Um primeiro tipo de sevícia consiste em sujar de poeira e terra o corpo ensanguentado, em dilacerar sua pele para que ele perca sua figura singular, a nitidez dos traços, sua cor e brilho, a um tempo sua forma distinta e seu aspecto humano, para que assim ele se torne irreconhecível. Quando Aquiles empreende ultrajar Heitor, amarra-o a seu carro para arrancar-lhe toda a pele (90), deixando seu corpo, especialmente cabeça e cabelos, arrastar-se pelo chão, na poeira: "uma nuvem de poeira levanta-se em torno do cadáver assim arrastado; seus cabelos negros espalham-se; sua cabeça jaz toda na poeira, essa cabeça outrora encantadora, páros charíen" (91). Sujando e desfigurando o cadáver em vez de purificá-lo e untá-lo, a aikía procura destruir a individualidade de um corpo de onde emanava o encanto da juventude e da vida. Aquiles gostaria de que Heitor tivesse o mesmo destino de Sarpedon, de que "nenhum homem, por perspicaz que fosse, não reconheceria mais os traços, de tal modo o sangue e a poeira o cobrem por inteiro da cabeça aos pés" (92). Tornando o corpo uma massa informe que não se distingue mais da terra na qual permanece estendido, não somente se apaga a figura particular do defunto, mas suprime-se a diferença que separa a matéria inanimada da criatura viva, reduz-se o cadáver a não ser mais o aspecto visível da pessoa, mas essa argila inerte de que falava Apolo. A terra e a poeira sujam o corpo porque o seu contato é para ele uma conspurcação, na medida em que pertencem a um território que é o contrário da vida. Durante a deploração, no momento em que os parentes do morto o aproximam dos vivos fazendo brilhar em seu cadáver um último reflexo da vida, eles também se aproximam do morto simulando sua entrada no mundo informe do traspasso; infligem a seu próprio corpo uma espécie de ultraje fictício conspurcando-se e arrancando-se os cabelos, rolando na poeira, enfeando-se o rosto com a cinza. Assim faz Aquiles quando sabe da morte de Pátroclo: "charíen d'êtsckune prâsopon
ultraja seu rosto encantador'' (93), como ultraja o rosto encantador de Heitor.
Uma segunda forma de aikía é a seguinte: o corpo é desmembrado, esquartejado, cortado em pedaços; cortam-se a cabeça, os braços, as mãos e as pernas; é dividido em pedaços: meleisti tamein (94). Ajax, furioso, separa a cabeça de lmbrios de seu pescoço delicado e a arremessa, como uma bola, sphairedón, a rolar na poeira (95); Heitor gostaria de espetar a cabeça de Pátroclo no alto de uma cerca após tê-la decepado (96); Agamêmnon mata Hipóloco quando este está por terra, "coría-lhe as mãos e decepa-o com a espada, joga-o rolando como um cepo, hóhnon hós, no meio da multidão" (97). Uma cabeça como uma bola, um tronco como um cepo, perdendo sua unidade formal, o corpo humano é reduzido ao estado de coisa ao mesmo tempo em que é desfigurado. "Vieram", escreve Pindaro na quarta Pitica, "cortar com o machado os ramos de um grande carvalho, enfear-lhe a espantosa beleza aischúnei de hai thaetòn eidos" (98). É justamente a esta beleza, com que se espantavam os gregos diante de Heitor defunto, que visam aos procedimentos de ultraje que atacam, no cadáver, a integridade do corpo humano.
O despedaçamento do cadáver, cujos restos são jogados ao acaso, culmina na prática, evocada desde os primeiros versos da Ilíada e lembrada ao longo do poema, de deixar o corpo para repasto de cães, aves e peixes. O ultraje leva aqui o horror a seu acme. Despedaçado, o corpo é devorado cru ao invés de ser entregue ao fogo que, queimando-o, o restitui ao além, na inteireza de sua forma. O herói, cujo corpo é assim largado à voracidade das feras, é excluído da morte ao mesmo tempo em que é diminuído da condição humana. Não atravessa as portas do Hades, porque não teve sua "parte de fogo"; não tem lugar de sepultura, não tem túmulo nem sema, nem mesmo corpo funerário localizado que marque para o grupo social o ponto da terra em que ele se acha situado e em que se perpetuem suas relações com seu país, sua linhagem, sua descendência ou até mesmo simplesmente com os passantes. Expulso da morte, ele se acha, no mesmo ato, riscado do universo dos vivos, apagado da memória dos homens. E mais, deixá-lo para as bestas não é somente, recusando-lhe os funerais, interditar-lhe o estatuto de morto, é dissolvê-lo na confusão, remetê-lo para o caos, para uma completa inumanidade: transformado em carne e sangue de animais selvagens, no ventre das bestas que o devoram, nele não há mais a menor aparência, o menor vestígio do humano: ele não é mais pessoa alguma.
Por fim, o último modo de ultraje. Abre-se o campo para as potências de corrupção, que operam no corpo das criaturas mortais, deixando o cadáver insepulto decompor-se e apodrecer por si, comido pelos vermes e pelas moscas que nele penetraram pelas feridas abertas. Quando Aquiles se apronta para retomar o combate, inquieta-se junto de sua mãe. Que vai acontecer, enquanto dura a batalha, com o corpo de Pátroclo? "Tenho muito medo de que durante esse tempo as moscas entrem no corpo do valente filho de Menetios através das feridas abertas pelo bronze e aí façam nascer os vermes, ultrajando assim este cadáver de onde a vida foi expulsa, e corrompam todas as suas carnes" (99).
O cadáver abandonado à decomposição é a completa inversão da bela morte, seu oposto. Num pólo está a jovem e viril beleza do guerreiro cujo corpo fere de espanto, inveja e admiração até seus inimigos; noutro pólo, aquilo que está para além do feio, a monstruosidade de um ser tornado pior do que nada, de uma forma desaparecida no inominável. Por um lado, a glória imperecível que eleva o herói acima da sorte comum, fazendo que seu nome e sua figura singular sobrevivam na memória dos homens. Por outro, uma infâmia mais terrível que o esquecimento e o silêncio reservados aos mortos comuns, esta coorte indistinta dos defuntos normalmente enviados para o Hades, onde se fundem, na massa daqueles que, por oposição aos "heróis gloriosos", chamam-se os "sem nome", os nónumoi (100). O cadáver ultrajado não toma parte nem no silêncio que envolve o morto habitual, nem no canto em louvor do morto heróico; nem vivo porque foi morto, nem morto porque privado de funerais, detrito perdido nas margens do ser, ele representa o que não se pode celebrar nem muito menos esquecer: o horror do indizível, a infâmia absoluta: a que vos exclui conjuntamente dos vivos, dos mortos, de si mesmo.
É Aquiles, o guerreiro glorioso, o combatente da honra heróica, que empenha toda a sua paixão em desonrar o cadáver daquele que, campeão dos troianos, era seu correlato no campo adverso e que, no imolar Pátroclo, abateu-o como se fosse seu próprio outro. O homem da glória imperecível pretende destinar seu rival às formas mais extremas da infâmia. Não o conseguirá. A Ilíada fala apenas em geral de guerreiros mortos, entregues aos cães e aos pássaros. Mas, todas as vezes que se precisam as ameaças de ultraje e que se efetuam sevícias, trata-se de um combatente cujo corpo é finalmente preservado. Evoca-se o horror do cadáver ultrajado a respeito de Sarpedon, Pátroclo e Heitor, isto é, três personagens que partilham cora Aquiles da qualidade de heróis. Nos três casos, a evocação do ultraje leva a enfatizar, por efeito de contraste, a beleza de uma morte heróica que, a despeito de tudo, confere ao defunto seu tributo de glória imortal. Quando Sarpedon cai peia espada de Pátroclo, é seu valor e sua audácia que levam os aqueus a apoderar-se dele para ultrajar-Ihe o corpo (101). Na confusão que se segue, Sarpedon, coberto de sangue e poeira da cabeça aos pés, já não é mais reconhecível. Zeus envia Apolo cora a missão de limpar-Ihe o sangue negro, de o lavar na água corrente de um rio, de untá-lo com ambrosia e de cobri-lo com vestes divinas e entregá-lo a Sono e Traspasso para que eles o deponham na Licia, onde seus irmãos e pais o enterrarão num túmulo, sob uma estela, "pois tal é a parte de honra devida aos mortos, lò gàr géras estí íhanónton" (102).
À inquietude de Aquiles com o corpo de Pátroclo, que corre o risco de apodrecer, comido de vermes, Tétis responde: "jaza ele um ano inteiro, sua carne permanecerá sempre intacta, émpedos, ou mesmo até em melhor estado, è kai areíon" (103). Juntando o gesto à palavra, a deusa destila no fundo das narinas de Pátroclo ambrosía e néctar vermelho, para que sua carne fique intacta, émpedos (104). Durante todo o tempo em que Aquiles se encarniça contra o cadáver de Heitor, arrastando-o no pó, dando-o à devoração dos cães, Afrodite, dia e noite, afasta as feras do morto; "ela unge-o com um óleo divino, cheirando à rosa, de medo que Aquiles lhe arranque toda a pele ao arrastá-lo" (I05). Por sua vez, Apolo traz do céu uma nuvem escura; "ele não quer que o ardor do sol lhe resseque muito rápido a pele que cobre os tendões e os membros" (106). Muito rápido — antes que o corpo, entregue a Príamo, seja objeto do ritual funerário que o enviará, intacto, para o além, na inteireza de sua beleza, eiímorphos, como diz Esquilo no Agamemnon, dos cadáveres gregos enterrados sob os muros de Tróia (107). A caminho da tenda de Aquiles, Priamo encontra Hermes, disfarçado de jovem escudeiro. Ele lhe pergunta se seu filho já foi cortado em pedaços e jô gado como comida aos cães. Hermes lhe responde: "Não, ancião, nem os cães nem os pássaros o devoraram ainda; ele continua perto da nave de Aquiles, tal como era, keínos. Eis que já se passaram doze auroras e ele está lá, caído por terra, e sua carne não se corrompe, nem os vermes o atacam. . . Sem dúvida, todo dia Aquiles o arrasta brutalmente em torno da tumba de seu amigo. . . ; ele não o estraga com isso, ouãè min aischúnei. Se te aproximasses dele, tu mesmo te admirarias, theoio ken autósi, com o frescor em que jaz, eerséeis, lavado o sangue que o cobria, sem nenhuma mácula, oudé potiti miarás. . . é assim que os deuses velam por teu filho, mesmo morto" (108).
Nos três casos, o cenário é mais ou menos o mesmo. Os deuses, milagrosamente, afastam do herói a vergonha de sevícias que, desfigurando, desnaturando-lhe o corpo a ponto de que, nele, não se possa mais reconhecer nem seu semblante nem um corpo humano nem mesmo um corpo, o reduziriam a não ser mais nada nem ninguém. Para mantê-Io tal como é, keínos, tal como a morte o colheu no campo de batalha, os deuses, nos gestos de lavagem e embelezamento que os homens praticam, se servem de ungüentos divinos: estas drogas de imortalidade preservam "intactas", apesar de todas as sevícias, a beleza e a juventude que, no corpo do homem vivo, apenas passam, mas que a morte cm combate eterniza, fixando-as na pessoa do herói assim como uma estela permanece para sempre erigida sobre um túmulo. Pelo tema da mutilação dos corpos, a epopeia enfatiza o lugar e o estatuto excepcionais da honra heróica, da bela morte, da gloria imperecível: elas ultrapassam de tão longe a honra, a morte, a fama comuns que, no quadro de uma cultura agonística, em quê só se prova o valor contra outrem, às custas e em detrimento de um rival, elas pressupõem, em contrapartida, uma forma radical de desonra, uma nidificação absoluta, uma infâmia definitiva e total tão abaixo da norma quanto mais acima se elevam. Se a narrativa desenha o lugar em que se vem inscrever o duplo invertido da bela morte — com o tema do cadáver ultrajado, com as alusões constantes aos corpos devorados pelos cães ou apodrecendo ao sol — esta perspectiva de uma pessoa reduzida a nada, perdida no horror, é afastada, contudo, no exato momento de sua evocação. A guerra, o ódio, a violência destruidora nada podem contra aqueles que, animados pelo sentido heróico da honra dedicaram-se à vida breve. A verdade do feito, desde que tenha sido cumprido, não mais poderia ser embaciada: é ela que constitui a matéria do èpos. Como poderia ultrajar-se o corpo do herói e extirpar-se sua lembrança? Sua memória é sempre viva: ela inspira a visão direta do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela morte: seu fulgor se prolonga e se funde na fulguração da palavra poética que, dizendo-Ihe a glória, a torna real para sempre. A beleza do kalós thánmos não difere da do canto que, celebrando-a, torna-se ele mesmo, na cadeia contínua das gerações, memória imortal.
____________________________

- NOTAS DE RODAPÉ -
° N. da R. Este artigo de Jean-Pierre Vernant retoma parte de suas conferências, realizadas no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 1977. (Tradução de Elisa A. Kossovitch e João A. Hansen.)
(1) Ilíada, 22, 304-5; cf. também 22, 110.
(2) Nicole Loraux, em sua tese intitulada Athènes imaginaire, cuja próxima publicação aguardamos, estudou o tema da bela morte na oração fúnebre ateniense. Este nosso trabalho muito lhe deve. Nicole Loraux publicou vários artigos sobre o mesmo assunto: "Marathon on l'histoire idéologique", Revue des Etudes anciennes, 75 (1973), p. 13-42; "Socrate, contre-poison de l'oraison funèbre", L'Antiquité classique, 43 (1974), p. 112-211; "HBH et ANDREIA; deux versions de la mort du combattent athénien", Ancient Society, 6 (1975), p. 1-31; "La 'belle mort' spartiate", a aparecer em Ktèma.
(3) Sobre o emprego de agathõs, como valor absoluto, sem outro qualificativo, em Homero, cf. II... 21, 280 e as observações de Verdeniiis, "Tyrtaeus 6-7 D. A commentary", Mnemosyne. 22 (1969). p. 338.
(4) II, 9, 410 ss.
(5) Desde o 1.° canto, Aquiles declara: "Oli, mãe, visto que me geraste para uma vida breve, que Zeus Olímpico. . . me dê pelo menos a glória". E Tétis, como a fazer eco, responde-lhe: "Teu destino, em vez de longos dias, só te concede uma vida breve", il, 1, 352-3 e 415-6 cf. também 19, 329 e 421
(6) 11, 9, 510-2.
(7) 7/., I, 288 e 177
(8) II, 1. 278.
(9) Em 9, 632 e ss, Ajax opõe ao coração inflexível de Aquiles a feliz disposição daqueles que aceitam, até mesmo para uma criança morta, o preço do sangue e a composição, a aídesis.
(10) 11, 24, 44.
(11) IÏ-, 2, 768-9 em que é o próprio aedo que enuncia como uma verdade
objetiva a superioridade de Aquiles.
(12) IL, 1, 119.
(13) IL, 1, 138-9; cf. 145-6.
(14) IL, I, 27S-9.
(15) IL, 9, 332; cf. 1, 227-9.
(16) IL, 1, 228; juízo análogo de Diomedes sobre Agamêmnon em 9, 38-9.
(17) Il, 9, 322.
(18) Il, 1, 171 e 356.
(19) Il., 1, 293.
(20) Il, 9, 648.
(21) Il, 9, 319.
(22) Il, 9, 378.
(23) Il 9, 322.
(24) Il, 9, 40S-9.
(25) Il, 9, 401.
(26) Il, 9, 605.
(27) Il, 9, 607-8.
(28) Il, 9, 378.
(29) Il, 9, 608: "phronéo de tetimèsthuì Diòs
(30) Il 1, 417 e 18, 95.
(31) Il, 12, 315-21.
(32) Il., 12, 305-6.
(33) Il., 16, 434.
(34) Il.,.16, 423: "óphra cheio hós tis hade kratéei..."; atitude, idèn-
tica de Heitor quanto a Diomedes em 8, 532 e 535; em 3, 58 Heitor exorta
Paris a enfrentar Menelaii para "saber o quanto vale".
(35) Referir-se, quanto a este ponto, aos trabalhos, doravante clássicos, de
A. W. H. Adikins, por exemplo a Moral values unii political behaviour in an-
cient Greece, London, 1972, p. 12-16.
(36) Il., 12, 322-8. O mesmo tema em Callinos, fr. I, 12-15 (Edmonds);
em Pindaro, OL, 1, 8L ss: "Visto que é preciso morrer, por que ficar na
sombra e consumir em vão uma velhice ignorada, longe de toda beleza." Em
Lisias, Oração fúnebre, 78.
(37) Cf. Marcel Détienne, Les nuâtres de vérité dans h Grèce archaïque,
Paris, 1987, p. 20-6.
(38) Hesíodo, Teogonia, 100; cf. M. Détienne, op. cit., p. 21-3. Referir-se
também ao belo livro de James M. Redíiold. Nature and culture m file Iliad.
The tragedy of Hector, Chicago and London, 1975, p. 30 ss. O nosso estudo
muito lhe deve.
(39) Cf. Pierre Vïdal-Naquet, Préface à Homère, Iliade, Paris, 1975, p. 32.
(40) IL, 9, 189.
(41) Sobre um procedimento de mesma ordem, com um sentido (liferents,
na Odisseia, cf. Françoise FriHitisi-Diici-oux, "Homère et le temps retrouvé",
Critique, 348 (maio 1976), p. 542. A Aquiles cantando a gesta heróica cor-
responde Helena figurando-a no tecido, 3, 125 e 6, 357-8.
(42) Mimnermo, 2, 5-7 (Edmonds).
(43) Cf. Nicole Loraux, "HDH et ANDREIA: deux versions de la mort
du combattant athénien", Ancient Society, 6 (1975), p. 1-31. Nicole Loraux
escreve: "Quando celebra arete ile um combatente, todo epitáfio versivo tende
a recorrer às fórmulas da epopeia em que agìaàn hében é apenas um esemplo
entre outros no demósion sèma" (p. 20). Quanto ao emprego da fórmula:
ele (eles) perdeu a brilhante juventude — para evocar a morte no campo
de batalha, ela observa: "Uma tal continuidade do epitáfio aristocrático,
louvando um individuo, ao epitáfio coletivo e democrático do demósion sema
merece a devida atenção, pois sugere a permanência de uma certa represen-
tação do morto como jovem" (p. 20).
(44 ) Sobre a associação da juventude combatente e da primavera, cf.
Nicole Loraux, loe. cit., p. 9-12, que recorda a oração fúnebre de Péricles
(sem dúvida o epitaphios de Samos), cm que o homem de Estado ateniense
compara a juventude, raptada pela morte cm combate à Cidade, à primavera
retirada do ano (Aristóteles. Retòrica, 1, 7, 1365 a 31-33 e IH, 10, 1411 a 1-4).
(45) II., 12, 323; cf. 8, 539.
(46) Hino homérico a Afrodite, (1), 218-238; cf. também Mimnermo, 4
(Edmonds): "A Titon, Zeus concedeu possuir como mal imortal a velhice,
o que é ainda pior do que a horrível morte." Observar-se-á o jogo verbal
kakón úphthíUm que lembra, para opor-sc, 0 kléos áplithiton. Para o jovem
guerreiro morto, a glória ¡morredoura, para o ancião inde fin idamente vivo, o
mal i morre do uro.
(47) Hesúxio, Teoooula, 955.
(48) Il., 9, 52-61; 11, 786-9.
(49) il, 3. 108-10.
(50) II. 4, 321. "Se então eu era Kouros, agora a idade avançada me
(51) Il., 4, 323-5; cf. 3, 150: em Tróia, são os demogêrontes que president
o conselho; "para eles, a idade pôs fim à guerra mas são helos diseurs adores".
(52) il., 7, 157; cf. também 11. 670; 23. 629 e 4, 314-5, onde Agamêmnon
diz a Nestor: "Não tens teu vigor intacto, émpedos, mas a velhice pesa
sobre ti". Em 8, 103, Dìomedes diz no mesmo sentido: "Teu vigor esta
alquebrado, a desagradável velhice te acompanha".
(53) il, 11, 225; enfaldes hébe.
(54) II, 11, 669; 13, 512-5; 23, 627-
(55) II, 13, 361.
(56) II, 13, 484.
(57) II, 13, 512-5.
(58) "Lipousa adrotêta kaì hében"; li., 16, 857 e 22, 363.
(59) Nicole Loraiix, op. cit., p. 22-3.
(60) Cf., sobre este ponto, J.-P. Vemant, Problèmes de la personne, sob
a direção de I. Meyerson, Paris, 1973, p. 54 e James M. Redfield, op. cit.,
p. 178 ss.
(61) lì., 24, 348. Trata-se de Hermes que tomou o aspecto de um jovem
príncipe, cuja barba mal começa a despontar. Em 3, 44-5, a beleza —
Icalòn eidos — de Paris não deve iludir: nele, não é nem força nem valentia.
Cf. também 3, 39; 55; 392. Em 21, 108, Aquiles diz a Lìcaon. que lhe suplica
que o poupe: "Eu mesmo, vês, sou belo e grande, km egò kalós te mégas te.”
Mas é para explicar-Ihe que é chegado o tempo de morrer. Por belo que
seja Aquiles, a morte paira sobre ele também: está próximo o dia em que
se Ilie arrancará a vida no combate. Não é Aquiles no furor da ação, mas
o herói se vendo sob o signo da morte. Sobre a beleza "real", mais que
guerreira, de Agamêmnon quando da trégua do combate, cf. 3, 169-70.
(62) Il, 19, 365; 375-7; 381; 398.
(63) II, 20, 46.
(64) IL, 22, 25-32.
(65) lì, 22, 134-5.
(66) lì., 22, 370-1; cf. também Odisseia. 24, 44: morto Aquiles, lav
seu "belo corpo" na água morna; e Euripedes. Suplicantes, 783: a v
dos cadáveres dos guerreiros argivos é kalòn théama, um belo espetáculo, embora amargo.
(67) Il, 22, 71-3.
(68) II, 22, 74-6.
(69) Além cio comentário de C. Prato deste fragmento (p. 93-102 de sua
edição de Tírteu), cf. C. R. Dawson, "Spoudaiogeloin. Randon Thoughts on
occasional Poems", Yale Classical Studies, .19. 1966. p. 50-58; W. ]. Verdenius,
"Tyrtaeus 6-7 D. A commentary", Mnemosyne, 22, 1969, p. 337-55.
(70) Fr. 6 (C. Prato), 1-2.
(71) Fr. 9, 31-2.
(72) Fr. 9, 39 ss.
(73) Cf. Heródoto, VU, 231.
(74) Fr. 7, 21-30.
(75) Loc. cit., p. 57.
(76) Cf. Esquilo, Agamêmnon, 78-9: "Que é um homem
quando a sua folhagem está inteiramente ressecada?"
(77) Il, 23, 135-6; quanto à cabeleira de Aquiles: 23, 144-151. Com-
parar às palavras de Andrômaca a Heitor, seu esposo: 22, 510-4.
(78) Lac. Pol, 11, 3. Cf. Nicole Loraux, "La belle mort spartiate",
Ktèma.
(79) 2, 443 e 472; 18, 359; 3, 43: passagem especialmente significativa:
os aqueus "cabeludos" devem rir com certeza ao verem a jovem beleza de
Paris que, longe de ser um bravo, não tem no coração nem força nem va-
(80) Heródoto, VII, 208-9.
(81) CE. Plutarco, Vida de Licurgo, 22, 1: os cabelos compridos conferem
os belos lima aparência mais nobre, aos feios tornam mais terríveis.
(82) Cf. Louis Gemet, Recherches sur le développement de la pensée
juridique et morale en Grèce, Paris, 1917, p. 211. Estes termos comportam,
com o a privativo, a raíz sik que marca a conveniência, a conformidade, a semelhança.
(83) Cf. II., 22, 75 a comparar com 22, 336; cf. também 18, 24 e 27;
24, 418.
(84) Cf. Il, 24, 54.
(85) Cf. Il, 16, 457 e 675.
(86) Mesma fórmula para o sema, em Odisseia, 11, 76 que a da II, 22,
305: kai essomênoisi puthésthai; em Odis., 4, 584. Menelau faz erguer um
túmulo para Agamêmnon "para que sua glória, kléos, permaneça imorredoura", como em Il., 7, 91, Heitor pensa que o séma de una inimigo, do qual triunfará no combate, lembrará este feito aos homens da posteridade: assim, seu kléos
nunca perecerá.
(87) Il, 17, 434-5.
(88) Sobre o emprego de émpedos com menos: Il., 5,254; com bía: 4 314;23, 629; com guiâ: 23, 627.'
(89) 11, 18, 346-353; Odlis., 24, 44-6.
(90) Il, 24, 21 e 23, 187. Nas duas passagens encontra-se o verbo apodrúpho
(91) Il, 22, 401-3.
(92) II, 14,638.
(93) Il, 18, 24.
(94) Il, 24, 409. Deixamos aqui de lado os problemas do maschalismos,
sobre os quais consulte-se E. Rohde, Psyché. ed. francesa por A. Reymond,
Paris, 1952, apêndice 2, p. 599-603. Eles sobressaem-se de um outro plano
De análise, que esperamos desenvolver num próximo estudo.
(95) Il, 13, 202.
(96) Il., 18, 176-8.
(97) II., 11, 146-7.
(98) Verso 469-70.
(99) Verso 19, 23-27; cf. também 22. S09 e M, 414-5.
(100) Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 154; Esquilo, Os persas, 10O3;
cf. J.-P. Vernaiit, Mythe et pensée chez les Grecs, 1, p. 29 e 62.

il, 16, 545 e 559.
(102) ZI., 16. 667-675.
(103) II, 19, 33,
(104) II, 19, 38-9.
(105) 11, 23, 185-7.
(106) a., 23, 190-1 e 24, 20-1.
(107) Os mortos gregos repousam éumorphoi
i aproximar dos éumoqtlioi kolosmt cio verso 416.
(108) 11, 24, 411-24; cf. 757.

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